domingo, 20 de janeiro de 2013

Um conto de separação

Marcelo tem 36 anos. É casado com Débora desde os 25. Foram 11 anos que, apesar dos altos e baixos, ele não se arrepende de ter compartilhado com ela.

Agora ele está na cozinha, tomando café da manhã enquanto ela termina de se arrumar e um pensamento não lhe sai da cabeça. Ele vai deixá-la. Mas por que isso, agora? Porque ele não aguenta mais quando ela deixa o arroz queimar e fica aquela crosta marrom no fundo da panela. Não que isso seja, assim, um acontecimento novo, ela sempre queimou o arroz, desde a primeira vez que cozinhou para um grupo de amigos (Marcelo, inclusive, à época) na casa de praia de Búzios. Ele nunca ligou. Agora ele sente vontade de arrancar os próprios olhos pra não ver aquilo. Talvez fosse uma boa ideia levar o cachorro pra passear quando ela estiver cozinhando, assim ele se acalma. Mas eles não têm cachorro, nem filhos. Ele até pensou em ter filhos mas o casamento já andava com as pernas bambas e melhor não complicar, ele não é dos que acredita que filhos salvam casamentos.

Ela está pronta pra sair, ele repara na roupa dela, saia e blusa impecavelmente passadas à ferro. Depois olha pra sua própria camisa social, também passada por ela, e sente que diversas partes da sua existência foram invadidas por monstros estupradores de idéias, passadores de camisas. Ele nunca fez questão de passar suas próprias roupas mas Débora jamais deixaria ele sair pra trabalhar todo amarrotado. Então, pra não criar uma discussão desnecessária todo dia, ele passou a usar as camisas como ela gosta.

Ela olha pra ele, vê que ele está flutuando em um mundo paralelo, os olhos vidrados na parede. "Vamos, Marcelo, eu tenho hora!" Subitamente, ele volta ao mesmo ponto no espaço-tempo onde está Débora. "Já vou, já vou. Só vou terminar essa xícara de café." Ela sai da cozinha com a respiração levemente ofegante, pisando firme com o salto-alto "TAC, tac, tac,..." Ele já conhece os sinais, agora ele tem exatos 5 minutos pra terminar o café e levantar da mesa antes que a coisa se complique.

Mas não foi sempre assim. Ele lembra perfeitamente quando se mudaram para esse apartamento, estavam loucamente apaixonados, faziam sexo mesmo depois de terem se arrumado para o trabalho, arrancavam as roupas no corredor e terminavam como dois animais engalfinhados em algum canto da casa. Fizeram isso em todos os cômodos, "pra batizar". Débora chegava atrasada no trabalho mas não se importava com a bronca do chefe. Agora, ela evita fazer sexo no dia anterior, depois das 22h, para poder dormir as 8h que seu corpo necessita. Marcelo sabe que a culpa também é dele. Há muito tempo, sexo pra ele se tornou masturbação acompanhada, pra ela nem isso.

Ela está voltando "..., tac, tac, TAC", ele toma o resto do café em um só gole e se levanta. Quando ela chega à cozinha ele está de pé ao lado da mesa, alisando a camisa que enrugou enquanto ele estava sentado. Ela esboça um sorriso como quem diz "Escapou por pouco, Marcelo. Você não imagina o discurso que eu já tinha preparado."

Ele olha para aquela mulher à sua frente e sabe exatamente porque se apaixonou por ela. Aquela expressão séria no rosto, um misto de sabedoria e dor, é o que de mais atraente uma mulher pode ter. Ah, e quando ela ri mostrando seus caninos protuberantes... ele se torna uma presa fácil. O corpo, então, nem se fala, mesmo depois de 11 anos, com 3 ou 5 quilos a mais, mantém a rigidez e as curvas que lhe chamaram a atenção quando a viu pela primeira vez. Ele até prefere assim, como ela está agora, mas o arroz queimado... ah, isso não dá pra aguentar.

Eles saem do apartamento. Quando estão dentro do elevador, a porta quase fechando, ela tem a impressão de ter deixado a porta do apartamento destrancada. Marcelo garante que ela trancou. Ela volta pra verificar. Ele, "Não disse que estava trancada?". Ela finge que não ouve.

Descem até a garagem, entram num carro vermelho, estilo utilitário. Trocaram o carro velho por este há dois anos, quando o IPI foi reduzido à 0%, "negoção" como dizia Marcelo. Pagam uma prestação mensal de R$ 537,80 e restam 22 parcelas a serem quitadas. Débora vai dirigindo porque ele sempre dirige muito colado no carro da frente, ela tem a impressão de que vai bater e involuntariamente pisa no freio mesmo estando do lado do passageiro.

Enquanto se locomovem até o trabalho de Marcelo, onde Débora o deixa todos os dias antes de seguir com o carro para a empresa onde trabalha, Marcelo tem tempo para mergulhar em seus pensamentos. Em média são 48 minutos dentro do carro sem troca de palavras desnecessárias.

Hoje, ele pensa em como dizer à ela que quer se separar. Se ele fala que as coisas não estão indo bem, que o arroz queimado o incomoda profundamente, ela vai dizer "Tá bom, meu bem, eu juro que não vou deixar mais o arroz queimar... agora troca a lâmpada do corredor, tá?" Mas ele sabe que é impossível ela parar de queimar o arroz, é parte da personalidade dela; algumas pessoas são criativas, outras são tímidas, ela queima o arroz. Ela diz que vai fazer certo dessa vez, por uns dois ou três dias há uma melhora considerável na brancura do arroz mas depois, lá está a panela com a crosta outra vez.

Talvez ele invente uma história... um caso, uma traição... a eficácia é garantida, ela lhe poria para fora de casa na mesma hora mas ele não quer partir seu coração, não quer que ela o odeie, só que ela o esqueça. Quem sabe uma viagem a trabalho por tempo indeterminado? Nesse caso ele vai ter que sair da cidade, melhor não. Depressão pós-bodas-de-aço? Ela vai mandá-lo procurar um psicólogo.

Bom, enfim decidiu o que fazer. Ele vai descer do carro normalmente quando chegar ao seu trabalho, se despedir dela, ir trabalhar e nunca mais voltar pra casa. Simples assim, "tchau, até mais tarde", ela não precisa saber quão tarde é "mais tarde". É isso. A solução perfeita.

Débora pára o carro na frente do prédio onde Marcelo trabalha. Ele abre a porta, pronto para desferir seu golpe final quando ela se vira pra ele e diz "Marcelo, eu quero o divórcio".